“Por
uma abordagem não medicalizante nem patologisante da educação”
Um
grupo de cidadãos, profissionalmente ligados a instituições de formação no
campo da educação e da saúde, sedeado na Faculdade de Psicologia e Ciências da
Educação da Universidade do Porto, com base (i) na
preocupação sentida pelo processo de medicalização crescente de todas as
esferas da vida a que se assiste na atualidade, (ii) nos direitos garantidos em
documentos fundadores como a Declaração dos Direitos do Homem e dos Direitos da
Criança, e (iii) na reflexão empreendida por diversos grupos de cidadãos em
todo o mundo e, em particular, pelo Fórum Sobre Medicalização da Educação e da Sociedade (S. Paulo,
Brasil), organiza no presente documento os pontos que pretende constituintes da
base para ações de reflexão política sobre a medicalização da aprendizagem e do
comportamento.
Esta
Plataforma, enquanto organização colectiva espontânea descentralizada, em que
cada um se constitui em porta-voz desta intervenção crítica contra a
patologização e medicalização da infância e da vida quotidiana, constitui-se na
senda de gerar uma opinião pública internacional contra a administração abusiva
de medicamentos, confundindo-se os inevitáveis desequilíbrios, estados de
desânimo e comportamentos que inevitavelmente a vida quotidiana produz,
com casos de enfermidade. Transferindo o
que são problemas sociais, políticos e pedagógicos para o reino do biológico, a
patologização e medicalização da educação escolar afirma-se num quadro de transformação
artificial de problemas decorrentes da incapacidade da escola para lidar com
uma população que não considera munida de predisposições que o funcionamento do
sistema exige, em problemas do foro médico.
·
Entende-se por medicalização o
processo que transforma, artificialmente, questões não médicas em problemas
médicos. Problemas de diferentes ordens são apresentados como “doenças”,
“transtornos”, “distúrbios” que escamoteiam as grandes questões políticas,
sociais, culturais, afetivas que afligem a vida das pessoas. Questões coletivas
são tomadas como individuais; problemas sociais e políticos são tornados
biológicos. Nesse processo, que gera sofrimento psíquico, a pessoa e sua
família são responsabilizadas pelos problemas, enquanto governos, autoridades e
profissionais são eximidos de suas responsabilidades.
·
O deslocamento da procura
de soluções educativas, no âmbito da escola, para o campo das soluções
psicologizantes e medicalizantes legitima “cientificamente” a ausência
desresponsabilizadora de respostas educativas democráticas numa escola de
massas, naturaliza e deixa invisíveis fenómenos de exclusão.
·
Como consequência, a aprendizagem e o
comportamento – campos de grande complexidade e diversidade – têm sido alvos
preferenciais da medicalização.
·
Uma vez classificadas como “doentes”,
as pessoas tornam-se “pacientes” e consequentemente “consumidoras” de
tratamentos, terapias e medicamentos, que transformam o seu próprio corpo no
alvo dos problemas que, na lógica medicalizante, deverão ser sanados individualmente.
·
O estigma da “doença” faz uma segunda
exclusão dos já excluídos – social, afetiva, educacionalmente – protegida por
discursos de inclusão.
·
Muitas vezes, profissionais,
autoridades, governantes e formuladores de políticas eximem-se de sua responsabilidade
quanto às questões sociais: as pessoas é que têm “problemas”, são
“disfuncionais”, “não se adaptam”, são “doentes” e são, até mesmo,
judicializadas; com isso se desviando, por vezes, a atenção a situações do foro
médico, exigentes de intervenção em conformidade.
·
A medicalização tem assim cumprido o
papel de controlar e submeter pessoas, abafando questionamentos e desconfortos;
cumpre, inclusive, o papel ainda mais perverso de ocultar violências físicas e
psicológicas, transformando essas pessoas em “portadores de distúrbios de
comportamento e de aprendizagem”.
·
Tendo
em conta os efeitos no desenvolvimento e aprendizagens das profecias
auto-realizadas, uma rotulagem precoce, mascarada de “diagnóstico”, produz
efeitos que podem condicionar o desenvolvimento de uma criança, na medida em
que esta se vê a si mesma com a imagem de si que os outros lhe devolvem.
·
Daí
que, em referência ao Manifesto del Forumadd, se corrobore a afirmação
de que todas as crianças e jovens merecem que se atenda ao seu sofrimento
psíquico e que os adultos atenuem o seu mal-estar. Todos, na sua condição de
cidadãos, merecem ter acesso a tratamento diferenciado, segundo as suas
necessidades, assim como à escuta de um adulto que possa ajudá-los a encontrar
caminhos criativos de superação desse mal-estar, e a redes de adultos que os
possam apoiar.
·
Considerando
a hegemonia dos interesses económicos que, actualmente, com grande acutilância,
atravessam todas as esferas da vida, é um exercício de cidadania a atenção
actuante e vigilância crítica a práticas e orientações que, em nome da ciência,
servem interesse que pouco têm que ver com os direitos das crianças e suas
famílias.
O sistema mundial conhece e
explora a lógica do desejo, já que, ainda que venda felicidade, sabe que o
contrário da tristeza não é a alegria mas a actividade.
“Para
Colina o TDAH (Transtornos do Deficit de Atenção com Hiperactividade) deve
ver-se como a reacção infantil a um conflito que retém o desejo, e algo de
similar se pode dizer de muitos comportamentos dos chamados transtornos limite
da personalidade na adolescência e na idade adulta. (…) Em resumo, sempre que o
desejo está comprometido, a acção inibe-se ou intensifica-se” (C. Rey, 2012). Consumismo
no discurso capitalista, hiperactividade para o discurso da evidência
científica, este último da “causalidade biológica e dos modelos
condutivistas a que o discurso universitário deu púlpito e cátedra” (ibidem),
que excluem a dimensão do desejo e o sentido interpretativo dos actos,
inscreve-se no retorno ao reducionismo biológico que informa as engenharias do
eu, negligenciando o saber que vem do sujeito que se maneja melhor na sua
ausência.Com isso se escamoteiam as grandes questões políticas, sociais,
afectivas e culturais que afligem a vida das pessoas; se engendram formas
subtis de tomar questões colectivas como individuais, responsabilizando as
pessoas individualmente e as famílias, num magma de enorme sofrimento. E a
escola permanece mais intocada, intensificando-se a sua vertente de lugar
privilegiado de reprodução social.
Porto, 1 de Julho de 2012
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